Festa da Tainha - 1978

Há um razão histórico-cultural para Bertioga contar com um evento que promove o consumo da tainha grelhada nas churrasqueiras, com carvão e fogo.

Hans Staden descreveu isso em 1557, no livro “Duas Viagens ao Brasil”, comentando sobre a pesca e o consumo das tainhas entre os indígenas:

“Em português chamam-se tainhas, em espanhol lisas e, na língua dos selvagens, piratis. Os selvagens chamam de piracema essa época da desova. Nessa época vão todos para a guerra, tanto os Tupinambás quanto seus inimigos, e durante os deslocamentos apanham e comem os peixes. (…) Com frequência, também vem gente que mora longe do mar e que pesca muitos peixes, torra-os no fogo, tritura-os, faz farinha e a seca bem para que se conserve bastante”.

Os povos originários sabiam a época em que as tainhas entravam no Canal de Bertioga em direção aos manguezais e ao Rio Itapanhaú, para desova. Grupos de indígenas vinham até Bertioga exclusivamente para a pesca da tainha.

Eram montados cercos ao longo do Canal de Bertioga, com estacas de madeira e folhagens. A estrutura era instalada a partir do mangue até vários metros para dentro do Canal de Bertioga, funcionamento como uma armadilha ou curral de peixes. As tainhas se deslocavam em cardumes e por isso os cercos funcionavam com muita eficiência, capturando dezenas ou centenas de tainhas. Eles eram construídos e acessados usando canoas. Pode ser que usassem pequenas redes (puçás) para retirá-las do cerco.

As tainhas eram grelhadas para serem consumidas imediatamente ou eram secadas e reservadas para que pudessem ser levadas às tribos, para alimentar as mulheres e crianças. O peixe-seco também podia ser triturado e virar farinha.

 

Gravura do livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden

 

Desenho com a estrutura de um cerco ou curral para pesca de tainhas. Fonte: “Pesca e tipos de embarcação”. Programa Ribemar – Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha.

 

Atualmente, os cercos são proibidos no litoral brasileiro.

Para Teodoro Sampaio, o maior intelectual e estudioso do “tupi” brasileiro, em seu livro “O Tupi na Geografia Nacional”, publicado em 1901, as grafias primitivas da palavra Bertioga vinham de “Britioca”, ”Bartioga”, “Piritioga”, “Beritioga” ou “Bertioga” e todas resultavam em uma mesma origem comum: “Pirati-oca”, o refúgio ou paradeiro das tainhas. Segundo o autor, o próprio Hans Staden, em sua clássica obra, escreveu “Bratti”, referindo-se ao que os portugueses chamavam de tainha. Assim “Bratioca” ou “Bertioga” vem do mesmo elemento aglutinado: “Brati” ou “Berti” (tainha) e “oca” ou “oga” (casa, refúgio, paradeiro). Teodoro Sampaio disse que a característica do local confirma a interpretação, pois o Canal de Bertioga sempre possuiu grandes cardumes de tainhas que vinham reproduzir nos manguezais. Hans Staden se referiu a pesca de tainhas, como um momento perigoso para sair da casa fortificada pois os Tupinambás poderiam atacar. E por isso, a posse dessas terras eram disputadas. Clóvis Chiaradia, em seu “Dicionário de Palavras Brasileiras de Origem Indígena”, adota a mesma interpretação.

Pela abundância desse peixe na região, a tainha sempre foi consumida pelos moradores que habitaram Bertioga ao longo dos séculos e nas diferentes etapas da ocupação local.

A Festa da Tainha é uma tradição que pertence especialmente as comunidades de Itaguaré e Indaiá. Nessas praias foram organizadas as primeiras festividades com propósito comercial.

Desde a década de 1960, Rubens de Moura Leite organizou por diversas vezes a Festa da Tainha de Itaguaré. A última foi em 1973. Era uma cerimônia onde os pescadores competiam entre si, indo com pequenas embarcações ao mar pescar as tainhas ao entardecer. A festa somente começava quando os pescadores retornavam com o peixe. Destacavam-se entre os pescadores Antonio Rodrigues, Nelson Batubano, além de filhos e netos de Miguel Bichir. Eram recordistas na pesca de tainhas. O peixe saía da Região Sul e vinha em direção ao litoral de São Paulo procurando águas mais quentes. Era pescada com redes especiais. A tainha era preparada de várias maneiras em Itaguaré: na brasa, na telha, na folha de bananeira, recheada ou não. Tinha vinho e outros acompanhamentos.

No início dos anos 1970 muitos restaurantes incluiriam em seu cardápio a tainha, como o restaurante “Camarão de Bertioga”, localizado onde antes funcionou o Hotel Umuarama, na esquina da Avenida Vicente de Carvalho com Tomé de Souza. Esse restaurante promoveu em 1973 a “Temporada da Tainha”, que era servida assada ou grelhada, acompanhada de molho de camarão e arroz.

 

Temporada da Tainha, em anúncio publicado no ano de 1973, no jornal “A Tribuna de Santos”.

Segundo Fernando Martins Lichti, em “Poliantéia de Bertioga”, a primeira Festa da Tainha do Indaiá foi realizada em 29 de junho de 1974, em comemoração ao dia do padroeiro dos pescadores, São Pedro.

Houve uma competição entre os pescadores, com premiação em medalhas e cestas de alimentos. O peixe pescado era descamado e assado na hora, envolto em uma folha de bananeira. A festa contava com barracas para a comercialização de doces. Foram instalados alguns brinquedos para as crianças. A festa foi realizada em frente ao Bar Santo Antonio, de Antonio Rodrigues, que foi um dos organizadores e fundadores da festa no Indaiá.

Em 1976, a festa passou a ser organizada pela Prefeitura de Santos, através da Secretaria de Cultura, Turismo e Esportes e pelo Trabalho de Integração Comunitária – TIC, presidido por Iara de Carvalho, esposa do Prefeito de Santos, Antônio Manoel de Carvalho. O ano de 1976 passou a ser considerado como o marco inicial dessa festa. A I Festa da Tainha do Indaiá.

Explica Fernando Martins Lichti em “Poliantéia de Bertioga” que essa festa foi realizada durante cinco anos consecutivos, de 1974 a 1979. Ousamos discordar, pois em diversas publicações de 1981 do jornal “A Tribuna de Santos” é anunciada a VI Festa da Tainha do Indaiá nos dias 5 e 6 de julho, com a organização da Sociedade Amigos da Praia do Indaiá e do Restaurante Zezé e Duarte.

 

Convite do Prefeito de Santos Antônio Manoel de Carvalho para a Festa da Tainha, no Indaiá, em Bertioga. Curiosamente, em 1976 e 1977 há publicações oficiais indicando que a Festa da Tainha no Indaiá era em homenagem a Santo Antônio de Pádua. Publicado no jornal “A Tribuna de Santos”, em 1976.

Nos dias 7 e 8 de julho de 1978 era promovida a I Festa da Tainha organizada pelo Lions Clube de Bertioga. Essa associação comemorava o 3º ano de fundação da sua unidade em Bertioga. Foi realizada na Casa da Cultura Emancipadora Prof.ª Norma dos Santos Mazzoni, em uma parte livre do terreno, hoje ocupada pela própria Casa da Cultura, em função de obras de expansão. Nessa época o prédio estava cedido ao Lions Clube de Bertioga. Era uma festa para convidados, que poderiam estar trajados como pescadores ou esporte completo. Os convites eram vendidos por João de Moura Fernandes ou Rubens de Moura Leite, em Santos. Diferentemente das festas realizadas nas Praias de Itaguaré e do Indaiá, a festa promovida pelo Lions era apenas comercial, funcionando como um restaurante e sem informações ou atividades tradicionais da cultura caiçara ou indígena. Essa festa, pela localização privilegiada ao lado do Forte São João, que sempre atraiu grande público de turistas, e contando com o apoio dos poderes públicos e ampla divulgação da imprensa, acabou se tornando a Festa da Tainha mais procurada do litoral brasileiro. É realizada até os dias atuais.

Em 1979, a II Festa da Tainha de Bertioga, organizada pelo Lions Clube, foi realizada nos dias 13 e 14 de julho. A captura das tainhas era feita por duas embarcações, que foram um dia antes para alto-mar. Também foi servido um vinho produzido no Rio Grande do Sul que veio especialmente para o evento de Bertioga.

Em 1981 foi realizada a IV Festa da Tainha, nos dias 10 e 11 de julho, agora incluída no Calendário Oficial de Eventos de Santos. Diversas premiações foram distribuídas, como relógios e rádios portáteis. Ela foi realizada na Rua João Ramalho, nº 741, pois a Casa da Cultura foi retomada pela Prefeitura de Santos.

Em 1982 foi realizada a V Festa da Tainha nos dias 16, 17, 23 e 24 de julho, em local novo: em frente ao Forte São João. Eram seis barracas montadas, cada uma com capacidade para 200 pessoas. Tinha música ao vivo. Em 1983 a VI Festa da Tainha foi realizada nos dias 15, 16, 22 e 23 de julho. Foram consumidas mais de 10 toneladas de tainha por cerca de 20 mil pessoas. O sucesso foi tão grande que em 1984 ela passou a ser realizada em todos os sábados e domingos de julho.

 

Cópia do cartaz de divulgação da VII Festa da Tainha, realizada em 1984.

Em 1985, para a VIII Festa da Tainha, foi montada uma estrutura incrível com madeira, telhas de “brasilite” e piso poliédrico. Foi instalada ao lado do Restaurante Zezé e Duarte,, de frente para a praia, permitindo as pessoas do lado de fora visualizarem e entrarem no local. Tudo muito bem organizado. Vários estandes: de doces, da Sobloco, da Prefeitura, de artesanato. Do lado tinha um parque de diversões. Bertioga estava lotada de turistas.

 

Em 1986 foi realizada mais uma edição: a IX Festa da Tainha. Ela foi instalada no mesmo lugar da anterior, em frente a praia, próximo ao Forte São João e do lado do Restaurante Zezé e Duarte. A estrutura montada contava com duas lonas de circo (duas tendas redondas), com capacidade para 350 pessoas. A maior era na cor azul. Precisava pagar para entrar e era tudo fechado por lonas, não se via o que tinha dentro. Isso resultou em diversas reclamações da população, que deixaram de ter acesso aos grupos musicais que somente se apresentavam dentro das lonas de circo. Eu lembro que eu com minha tia Dulce Bittencourt Abdalla e minha prima Elizabete entramos, eu queria comprar doce, porque nos anos anteriores eu comi os doces da Festa da Tainha e não ia perder aquele ano. Lá dentro eu me lembro que era um ambiente bem agradável, porém muito menor e inferior ao que foi montado em 1985. Estava acontecendo uma apresentação de dança típica espanhola (Grupo Puerta del Sol). A população também reclamava disso, pois queria grupos locais ou regionais.

 

Anúncio da IX Festa da Tainha, realizada nos dias 12, 13, 19, 20, 26 e 27 de julho de 1986. Foi patrocinada pela Sobloco. Publicação do jornal “Cidade de Santos”.

No governo do Subprefeito Renato Faustino de Oliveira Filho, na XII Festa da Tainha a Prefeitura de Santos montou uma estrutura em frente a Casa da Cultura com uma lona enorme em formato retangular, na cor laranja e branco, sobre a Avenida Tomé de Souza, decorada internamente com várias mudas de coqueiros, que depois foram plantados na Avenida Vicente de Carvalho, complementando os antigos coqueiros que já existiam. O acesso ao interior da festa era livre e lá tinha o quiosque dos doces. Próximo a Festa da Tainha, em frente ao Restaurante Camarão tinha um palanque para apresentações artísticas e uma quermesse. Uma das apresentações foi da cantora sertaneja Samara e do cantor Tony Angeli. Também teve apresentação do Balé Afro de Santos, da Capoeira de Bertioga, do Conjunto Boêmio do Hotel Atlântico de Santos, do Grupo teatral Cisne Branco e dos grupos musicais de Bertioga “Recordasom” e “Quem dera fosse banda”.

 

A tainha era assada na telha, sem as vísceras, mas inteira, com a cabeça. Mais recentemente a tainha é assada aberta, espalmada. Tem duas razões para isso. A primeira é o custo das telhas e o trabalho depois para limpeza e lavagem, sendo que algumas nem podiam ser reaproveitadas. A outra razão é a estética do prato. Para alguns cozinheiros, a tainha após grelhada com a cabeça e os olhos ficava com um aspecto feio, assustador, intimidando o consumo e alguns clientes até ficavam com pena de comer o peixe morto, especialmente as crianças.

 

As tainhas grelhadas inteiras

 

As tainhas atualmente são servidas espalmadas (abertas). Foto da Prefeitura de Bertioga.

Em outros anos, sem patrocínio, a Festa da Tainha foi realizada dentro do Restaurante Zezé e Duarte, de modo precário, com o esforço pessoal do próprio Duarte, mas nunca deixou de ser realizada.

Segundo a Universidade Federal de Santa Catarina, a tainha pescada e consumida no litoral sul e sudeste do litoral brasileiro é a tainha “Mugil liza”. São peixes com alimentação diurna e se alimentam de algas, zooplânctons e detritos. As tainhas comem qualquer coisa. A tainha tem o estômago muito muscular, bem curtinho e pequeno, e o intestino bem longo. Assim, é um peixe adaptado para comer restos vegetais, tudo o que tiver no fundo de uma lagoa, de um estuário.

A espécie “Mugil liza” migra anualmente de estuários na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul até o norte do estado de São Paulo. Deslocam-se em grandes cardumes a partir da Lagoa dos Patos, no estado gaúcho, principalmente. Juntam-se aos indivíduos vindos do estuário do Rio da Prata e rumam ao oceano com o intuito de reproduzir. De acordo com seu tamanho, a tainha fêmea pode liberar no mar entre 500 mil e 2 milhões de óvulos, que se encontram ao acaso com o esperma do macho. Os óvulos fertilizados são abandonados à própria sorte, postos à deriva, servindo muitas vezes de alimento para outras espécies, sendo atirados à beira das praias pela força das correntes ou mortos pela mudança de temperatura.

 

A tainha “Mugil liza”, que pesa de 2 a 4 kg e mede aproximadamente 50 centímetros. Apresenta um corpo robusto, alongado e fusiforme (com as extremidades mais estreitas que o centro), com a cabeça pontiaguda e achatada, a boca pequena, e os olhos grandes e amarelados – parcialmente recobertos por uma pele (pálpebra adiposa) muito desenvolvida nos adultos.

 

As tainhas saltam no Canal de Bertioga e nas águas do Rio Itapanhaú.