Cemitério de Bertioga - 1935

Nos primórdios da civilização, o primeiro povo que teria habitado Bertioga, os “sambaquieiros” ou “sambaquianos”, eram sepultados nas formações por eles construídas de conchas, areia e estacas de madeira, também usadas para a moradia, os “sambaquis”. Já os povos indígenas da etnia Tupi tinham uma variedade muito grande de métodos de sepultamento: dentro da aldeia ou na periferia dela, em covas ou em vasilhas de cerâmica. O sepultamento em cemitérios foi um costume introduzido pelo europeu a partir do descobrimento do Brasil.

Atualmente, o cemitério está localizado no centro de Bertioga, na Rua da Saudade, próximo a Prefeitura. Este cemitério foi aberto em 1935, por iniciativa da Prefeitura de Santos, pois nesta época Bertioga era qualificada como um “bairro” de Santos, vindo a se tornar Distrito somente em 1944.

Porém, existem interpretações e documentos históricos que informam a existência de dois cemitérios anteriores: a) o cemitério de soldados ao lado da Capela de São Thiago (Forte São João); b) o cemitério instalado no entorno da Capela de São João Batista, em frente à praia.

A Capela de São Thiago era parte integrante do quartel do Forte São João. A existência dessa capela em adoração ao santo é comprovada por documentos oficiais da época de construção do forte. Em 22/12/1555, Fernão Luiz Carapeto era o primeiro padre nomeado para a “Vigaria de Santiago da Britioga” (Capela de São Thiago), ainda em construção nessa época.

Próximo a essa capela é possível defender a teoria de que ali houvesse um terreno destinado aos mortos, um “campo santo”, como eram conhecidos esses locais no entorno dos templos religiosos. Os historiadores clássicos são unânimes em afirmar que Bertioga teve na década de 1540 uma “aldeia”, “cidadela”, “sítio”, com colonos, indígenas e descendentes. Dali em diante, sempre teve alguma gente vivendo na Barra de Bertioga. Também existem diversos relatórios arquivados em bibliotecas e registros públicos em Portugal indicando a presença de soldados no Forte São Thiago (Forte São João). Adler Homero Fonseca de Castro, em “Muralhas de Pedra, Canhões de Bronze, Homens de Ferro” menciona que em 1765 existia 1 sargento e 23 soldados na fortificação. Moradores e soldados, era preciso um lugar para sepultá-los ao fim de suas vidas. Era costume e tradição enterrar os entes queridos o mais próximo possível da casa de Deus. Deveria existir um local destinado às sepulturas e possivelmente ficaria ao lado de uma capela, pois assim era formado um “campo santo”, costume que permaneceu do século IX até o século XVIII. As adjacências da Capela de São Thiago, tudo indica, deveriam ser esse “campo santo”.

A Prefeitura de Bertioga, através de sua Coordenadoria de Cultura, em 1994, revelou para o Jornal A Tribuna de Santos que existiam estudos sobre isso e que este cemitério deveria ficar onde mais tarde foi construída a vivenda do casal Besser (a “Pensão Bertioga”), e depois, na mesma casa, o “Restaurante e Lanchonete Zezé e Duarte”. Consultamos o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN sobre isso, que discorda de tal interpretação e menciona que o único cemitério que existiu foi o que ficava em frente à praia instalado ao redor da Capela de São João Batista.

O antigo cemitério mencionado pelo IPHAN estava localizado onde hoje é a Casa da Cultura e começou a ser formar ali, de modo precário e sem planejamento, alguns anos após a construção da Capela de São João Batista, por volta de 1760. Era destinado aos moradores locais. Em relação a isso, não há controvérsias. Era esse o cemitério da praia, posteriormente destruído por diversas ressacas do mar. Logo, o “campo santo”, ao lado da Capela de São Thiago, cairia em esquecimento.

Fernando Martins Lichti, em sua “Poliantéia de Bertioga”, descreve o cemitério secular do povoado, localizado numa área de aproximadamente 50 metros de frente por 100 metros de fundos, de frente para a praia.

No dia 31 de março de 1904, uma quinta-feira santa, veio passear em Bertioga Constantino de Mesquita. Ele foi subdelegado de Polícia em São Vicente no período imperial e participou de um dos movimentos abolicionistas locais. Ele relatou em um artigo publicado no jornal “O Diário de Santos” sua terrível experiência ao visitar o cemitério. Disse que a terra das sepulturas estava revolvida e as plantas que as adornavam estavam arrancadas, em razão de porcos que eram criados livremente e haviam profanado diversos túmulos. O chão do cemitério era pedregoso, em função dos detritos espalhados das ruínas da antiga Capela de São João Batista. E não eram apenas os moradores locais sepultados ali, pois também vinha gente que morava nas comunidades ribeirinhas do Canal de Bertioga e de outros lugares do litoral norte. Constantino de Mesquita pedia providências por intermédio da Câmara Municipal de Santos, para que oficiasse a Prefeitura para cercar o cemitério com arame, destacar um servidor público para atuar como zelador e até mesmo instalar um novo cemitério.

No Jornal “Folha da Manhã”, de 23 de janeiro de 1926, o jornalista Benedicto Ribeiro fala sobre sua visita à Bertioga, destacando o “velho cemitério”, escondido no meio da vegetação, com a “natureza fulgurante e sempre renovada”, afastava a ideia da morte ou do que se foi.

O cemitério da Vila de Bertioga ganhou destaque pelos relatos de sua destruição entre 1926 e 1934, pelos efeitos do mar. As datas e os relatos deixam claro que após a primeira grande ressaca, vieram novas marés altas, que já eram suficientes para provocar novos danos ao cemitério. A imprensa paulista noticiou horrorizada a situação do cemitério de Bertioga. O evento realmente existiu e impressionou os moradores da época, que contaram isso para as gerações seguintes. Elizabete Bittencourt Abdalla conta que seu pai, Waldemar, com cerca de onze anos na época, viu os caixões boiando.

Para Fernando Martins Lichti foi em 1926 que uma forte ressaca destruiu todo o cemitério, arrancando as campas, que eram rasas, e removendo ossos e caixões. Essa ressaca teria durado por volta de três meses, deixando espalhado pela praia diversos ossos humanos, alguns parcialmente enterrados na areia. Mesmo quinze anos depois eram encontrados ossos humanos na areia da praia. O que foi possível recuperar foi levado para o novo cemitério, que ocupa o mesmo local até hoje.

Acontece que, revisitando o noticiário da época, agora é possível revelar que foram vários eventos de marés altas que destruíram a necrópole, tal como noticiava-se. Ao menos houve uma grande ressaca, talvez em 1926, seguida, anualmente, por constantes marés altas que continuavam destruindo o cemitério e removendo túmulos, cadáveres e ossadas.

Mesmo após a grande ressaca e as marés altas, os moradores continuaram realizando sepultamentos naquele local, pois não havia outro. Bárbara Rosa dos Santos, esposa de João Basílio dos Santos (dono da Chácara dos Jambeiros), faleceu em 19 de junho de 1931 e foi sepultada no “cemitério da praia”, conforme noticiou o Gazeta Popular em 22 de junho de 1931. Ela havia deixado três filhos menores, Daniel, Judith e Benedicta, o que casou “profunda tristeza no círculo de relações” e “numeroso acompanhamento” do enterro.

Em 3 de outubro de 1934 o “Correio Paulistano” disse que “a situação chegou a tal ponto que alguns moradores das proximidades do cemitério viram-se na contingência de mudar de residência, impressionados pelo espetáculo macabro que contemplavam e pelo efeito do mau cheiro reinante no local, por terem ficados espalhados, por diversos lugares, restos humanos ainda em decomposição, arrastados das sepultaras pela violência da correnteza”. A água do mar invadia o cemitério na maré alta e quando vinham as vazantes, arrastavam plantas, cruzes, escavavam sepultaras, desmoronavam barrancos, colocando expostos restos humanos, levando caixões para o mar. E essa mesma maré alta também avançava em outros pontos da Vila e da orla do Canal de Bertioga, mas o Forte São João e o quartel não foram atingidos.

Aos moradores da Bertioga foi dado assistir um espetáculo tétrico. As águas levaram para o seio do oceano diversos corpos e com eles alguns caixões fúnebres. Vários moradores, embarcados em canoas, ainda tentaram recolher os despojos humanos, mas restou inútil tão estafante trabalho, devido a agitação do mar.

Em outubro de 1934, o “Correio Paulistano”, pela sucursal de Santos, enviou um jornalista até Bertioga para descrever o que acontecia, já que chegavam relatos aterrorizantes em São Paulo. E verificou que só restavam meia dúzia de sepulturas, pois todo o resto o mar já tinha levado, foram várias ressacas ao longo dos anos. E aí foi entrevistado Hilário Ribeirão de Freitas, encarregado da Prefeitura de Santos para tomar conta do cemitério e da antiga escola. Era um moço, mas era a pessoa mais importante para falar sobre o assunto. Ele substituiu seu pai, que desde a década de 1910 era zelador do cemitério, Francisco Ribeirão de Freitas, falecido em 1931. Contou, que uma mulher que recentemente foi enterrada, pediu para que as joias fossem com ela, para o túmulo. As joias foram achadas na praia. O jornalista do “Correio Paulistano” presenciou ossos e crânios espalhados no meio do mato, nos cantos do cemitério, e disse que saiu junto com Hilário recolhendo esses despojos. O zelador do cemitério estava consternado, não tinha o que ele fazer. A solução era um novo cemitério, em outro local. Ele tomava conta da escola também, que estava em ruínas nessa época. Era o administrador/zelador do cemitério destruído e o diretor da escola em ruínas.

Joel de Aquino, em 1937, em artigo publicado para a “Revista da Semana”, citava que o “velho cemitério que existia ao lado do Forte São João foi destruído por uma ressaca”, alertando que isso também poderia ocorrer no monumento quinhentista, o Forte São João, se continuasse no esquecimento.

A Revista “A Voz do Mar”, em 1938, citava que “ainda muito recentemente, por ocasião de ressaca que invadiu a belíssima praia de Bertioga” o cemitério foi atingido, com a remoção do solo.

Disse Fernando Martins Lichti, que o velho cemitério possuía um pórtico de alvenaria, formado por duas colunas e um portão de ferro, com um pequeno cercado. Dentro dele permaneciam alguns vestígios das ruínas da Capela de São João Batista. A capela é mais antiga do que o cemitério, que se formou no entorno da Capela, como um “campo santo”.

As ruínas da Capela de São João Batista, tomada pelo mato, e algumas sepulturas, com cruzes, em volta dela.

As ruínas da Capela de São João Batista, apoiadas por uma árvore que cresceu ao lado. O cemitério se formou a partir da Capela

O velho cemitério de Bertioga, em 1905. Esta foto mostra as ruínas da antiga Capela de São João Batista, coberta por troncos de árvores entranhados em suas paredes. As sepulturas eram instaladas em volta dessa capela, ali formando um “campo santo”. Foto da Coleção de Luiz Gonzaga de Azevedo, adquirida pela Fundação Roberto Marinho e doada ao Museu Paulista, da USP. Colorizada por História de Bertioga.

É a mesma foto acima, ampliada. Nesta foto, Luiz Gonzaga de Azevedo, que estava em visita à Bertioga. Ao seu lado, uma cruz, identificando um dos locais de sepultura. Ao fundo, é possível ver a praia.

Essa capela histórica foi erguida em função do Vigário de Santos, João da Rocha Moreira, ter deixado por “testamento” que fosse ela construída em homenagem a São João Batista. Teve a sua primeira missa celebrada em 1740. No entanto, foi destruída em 1769 por uma grande ressaca. O que restava dessas ruínas foi removido ou demolido pela Prefeitura de Santos para a construção do prédio definitivo da escola, entre 1940 e 1942.

No dia 13 de junho de 1935, uma quinta-feira, foi inaugurado o novo cemitério, no mesmo local dos dias atuais. Aristides Bastos Machado, com a autoridade de ser deputado e ex-Prefeito de Santos (tinha deixado o cargo em abril de 1935), conseguiu que imediatamente fosse disponibilizado um terreno para o cemitério. A cerimônia de inauguração contou com a presença do Frei Odorico Durieux, Vigário Geral da Paróquia de Santo Antônio do Valongo que benzeu a nova necrópole (cemitério). Como de costume, o Diretor de Ensino de Santos e inspetor, Prof. Delphino Stockler de Lima, também estava presente representando o Prefeito de Santos. O cemitério foi instalado à 700 metros do anterior, de modo que as enchentes jamais o atingissem. Os despojos que estavam no cemitério da praia foram recolhidos e sepultados no novo cemitério (cerca de seis sepulturas e diversas ossadas recolhidas e não identificadas).

Frei Odorico Durieux, nasceu em 1908 e faleceu em 1997. Quando benzeu o cemitério de Bertioga, atuava como missionário na Diocese de Santos, na função de “Vigário Geral da Paróquia de Santo Antônio do Valongo”, e tinha apenas 27 anos. É prestigiado em Blumenau/SC, onde lecionou por mais de 40 anos no Colégio Santo Antônio

Em 1935 assume como administrador do Cemitério de Bertioga Sebastião Corrêa dos Santos.