A escravização nos sítios de Bertioga – séculos XVI/XIX
A escravização dos africanos e afrodescendentes no Brasil teve início no século XVI, entre 1539 e 1542, quando os primeiros africanos chegaram a Pernambuco, e terminou no final do século XIX, em 1888, com a Lei Áurea. Foram mais de 300 anos do pior capítulo da história do povo brasileiro, com graves consequências econômicas e sociais aos descendentes dos africanos ainda nos dias de hoje.
Segundo Leandro Carvalho, Mestre em História, o comércio de pessoas que se tornavam escravizadas estava presente no continente africano desde os egípcios antigos e isso acontecia principalmente em razão das guerras: membros de tribos rivais eram reduzidos à condição de cativos. As guerras se davam entre os diversos reinos africanos e, também, por meio dos conflitos que ocorriam entre as diferentes etnias africanas. Outra forma pela qual as pessoas se tornavam escravizadas era para cumprir o pagamento de dívidas. Na África, isso produziu diferentes grupos sociais, muito diferente da escravização praticada na América, baseada no trabalho forçado e humilhante. No decorrer do século XV, os europeus, no intuito de expandir suas atividades comerciais, exploraram a costa africana. Com a colonização da América, necessitavam de mão de obra para trabalhar nas terras conquistadas no Novo Mundo.
Os países europeus que protagonizaram o tráfico de escravizados para a América são Inglaterra, Holanda, Dinamarca, França, Espanha e, para o Brasil, era Portugal que enviava os africanos.
As condições em que os africanos vinham para o Brasil eram degradantes e sem qualquer higiene. Eram todos marcados a ferro quente antes do embarque nos “navios negreiros”. Muitos morriam durante a viagem, com índice de 16% de mortos. Chegavam assustados, atordoados, confusos e doentes após 63 dias de viagem pelo Atlântico, entre a África e o Novo Mundo, a América. Quase todos estavam machucados pelas feridas provocadas pelas correntes colocadas nos pulsos, tornozelos e, às vezes, no pescoço.
Segundo Laurentino Gomes, a absoluta maioria dos africanos que vieram para o Brasil eram de Angola e do Congo. Sete em cada dez africanos eram dessas nações. Mas vieram africanos de diferentes nações, e no caso específico do litoral do Estado de São Paulo a maioria vinha de Moçambique, no leste da África.
A Vila de Bertioga não foi diferente do resto do país. Primeiro, os sítios existentes usavam como mão de obra o trabalho do indígena escravizado, e depois o negro escravizado assume esse ônus. A atividade agrícola desenvolvida em Bertioga no século XIX (1801/1900) usava, exclusivamente, o negro como trabalhador encarregado de todos os serviços da lavoura e inclusive os trabalhos domésticos da casa do seu “dono”. Bertioga tinha “senzala”.
Alguns fugiam e eram recapturados. Houve caso de negros rebelados contra o “fazendeiro/dono” de um desses sítios, fazendo-o de refém, precisando de força policial vinda de São Paulo para conter a situação. Já aconteceu de quatro negros e dois brancos formarem um grupo de detratores, para assaltos, resultando até em duas mortes de moradores. Em outro caso, uma negra escravizada suicidou-se pulando em um dos rios de Bertioga. Em dezembro de 1880, mais um suicídio, do negro escravizado Amâncio, de propriedade de Antônio Ferreira da Silva, o prestigiado Barão do Embaré, que foi militar, negociante e vereador de Santos por diversas vezes. A escravização do negro também esteve presente de modo cruel na história da Vila.
Eles eram castigados, humilhados e tratados como se fossem um objeto ou um animal. A cultura, o idioma, as tradições, os títulos, a herança, a ancestralidade, foram apagados pelo projeto de poder de um novo mundo. Rugendas e Debret, artistas, por meio de suas pinturas, denunciavam o horror.
Na Armação das Baleias os trabalhos de pescaria dos cetáceos e de beneficiamento do animal nas instalações localizadas na Ilha de Santo Amaro, no “Rio da Bertioga” (Canal de Bertioga), eram todos executados por negros escravizados. No Recenseamento de 1822, a Armação das Baleias possuía 51 escravizados no total. João da Costa era Tenente-Coronel da Armação das Baleias, com 62 anos de idade e sua esposa Maria de 49 anos, tinham 7 filhos e 48 escravizados. O Feitor da Armação, Innocencio de Mesquita, solteiro, com 68 anos, tinha 3 escravizados.
O inventário oficial dos bens da Armação indica a existência de uma casa de senzala. Em 29 de julho de 1835 foi publicado um relatório da situação da Armação das Baleias, em processo de desativação, apontando ali a existência de alguns “escravos inválidos”. Em 26 de novembro de 1835 foi determinado ao almoxarife da Praça de Santos mandar fazer a cada escravizado da Armação duas camisas, duas calças, uma “vestia” e uma coberta. Os jovens e fortes valiam mais, já os idosos e doentes eram abandonados, mas também não podiam ficar e ocupar as terras que pertenciam aos brancos.
Segundo o Recenseamento de 1822, a Vila de Bertioga tinha oficialmente 33 africanos ou afrodescendentes escravizados. Eram seus proprietários: José da Silva (sargento) e sua esposa Anna Rosa, com 13 escravizados; João Furtado (agricultor), com 10 escravizados; Francisco Pedroso (agricultor) e sua esposa Anna, com 2 escravizados; Manuel Gonçalves (pescador), com 1 escravizada; e Ignacio Eloy (agricultor), com 7 escravizados.
No dia 12 de setembro de 1835 foram apreendidos na Praia de São Lourenço dois africanos pelo Tenente João Baptista da Silva Costa. O Juiz de Direito da Vila de Santos determinou que um ficasse à disposição de Santos e outro poderia ser “concedido” como “recompensa” ao Tenente que havia o apreendido, para colocá-lo à “venda”.
Em 2 de julho de 1831 foram apreendidos 267 africanos, lançados por contrabando nas praias de Bertioga, pois além do tráfico internacional de africanos, também tinha um contrabando interno para comercialização ilegal. Os africanos apreendidos foram julgados e depois empregados na construção da estrada de Santos e em outras utilidades públicas. Já os que sobrassem poderiam ser colocados à venda nas povoações vizinhas, e sendo permitida a compra de apenas um escravizado por família.
O comércio de africanos era um negócio extremamente lucrativo nessa época no Brasil. Eles eram despidos, medidos e pesados, os jovens e saudáveis eram os mais valorizados. Era algo comum ter um negro escravizado ou simplesmente colocar um anúncio nos jornais da época anunciando a venda de um cativo.
A Lei de 7 de novembro de 1831 (Lei Feijó), proibiu o tráfico de africanos para o Brasil, mas ficou conhecida como a lei “para inglês ver”, dando origem a esse famoso provérbio brasileiro, pois a Inglaterra, para apoiar a independência do Brasil em 1822 exigiu que fosse assinado um tratado proibindo o tráfico internacional de africanos, o que ocorreu em 1826 e depois resultou na citada Lei Feijó. Mas, o tráfico continuava acontecendo.
Por isso, esses 267 africanos apreendidos em Bertioga preocuparam o Governo Imperial. O caso ganhou repercussão nos jornais e o Brasil possuía acordo com a Inglaterra proibindo o tráfico de africanos. Foi orientado pelo Governo Imperial que eles fossem inspecionados e bem tratados, antes de serem postos à serviço do Poder Público ou vendidos.
Mesmo diante dos diversos problemas provocados pela escravidão, a cultura africana, de seus povos originais, prevalecia e resistia ao tempo, nas senzalas e nos terreiros. Os negros namoravam, se apaixonavam, constituíam famílias e tinham filhos. A dança, a capoeira, a religião, a contribuição para o idioma e culinária brasileira, estavam presentes nos raros momentos de descanso.
Segundo Tales Pinto, Mestre em História, para o site UOL, “moleque”, “quiabo”, “fubá”, “caçula”, “angu”, “cachaça”, “dengoso”, “quitute”, “berimbau” e “maracatu”. Todas essas palavras do vocabulário brasileiro têm origem africana ou referem-se a alguma prática desenvolvida pelos africanos escravizados que vieram para o Brasil durante o período colonial e imperial. Elas expressam a grande influência africana que há na cultura brasileira. A existência da escravidão no Brasil durante quase 400 anos, além de ter constituído a base da economia material da sociedade brasileira, influenciou também sua formação cultural. A miscigenação entre africanos, indígenas e europeus é a base da formação populacional do Brasil.
A matriz africana da sociedade tem uma influência cultural que vai além do vocabulário. O fato de as escravizadas africanas terem sido responsáveis pela cozinha dos engenhos, fazendas e casas-grandes do campo e da cidade permitiu a difusão da influência africana na alimentação. São exemplos culinários da influência africana o vatapá, acarajé, pamonha, mugunzá, caruru, quiabo e chuchu. Temperos também foram trazidos da África, como pimentas, o leite de coco e o azeite de dendê. No aspecto religioso os africanos buscaram sempre manter suas tradições de acordo com os locais de onde haviam saído do continente africano. São exemplos de participação religiosa africana o candomblé, a umbanda, a quimbanda e o catimbó.
O samba, afoxé, maracatu, congada, lundu e a capoeira são exemplos da influência africana na música brasileira que permanecem até os dias atuais. Instrumentos como o tambor, atabaque, cuíca, alguns tipos de flauta, marimba e o berimbau também são heranças africanas que constituem parte da cultura brasileira. Cantos, como o jongo, ou danças, como a umbigada, são também elementos culturais provenientes dos africanos.