A Vila de Bertioga - 1930
A década de 1930 é marcada novamente por uma profunda transformação da Vila de Bertioga, continuando ser impulsionada pelo turismo, nesta época promovido comercialmente e culturalmente em São Paulo pela “Sociedade Amigos de Bertioga”. O Forte São João, assim como o Forte São Luís e a Ermida de Santo Antônio do Guaíbe estavam arruinados. É nesta época que surgem os primeiros estabelecimentos destinados a hospedagem dos excursionistas e visitantes que vinham para piquenique ou passar alguns dias em um paraíso bucólico. Não tinha água encanada e nem energia elétrica, mas as famílias de Miguel Bichir, Elias Nehme, João Sabino Abdalla, Epiphânio Batista (Faninho) e Nestor Pinto Florêncio de Campos consolidavam-se na Vila, com suas famílias e seus negócios.
A antiga e prestigiada Revista Carioca nº 56, publicada em 14 de novembro de 1936, relatava que “Bertioga, na sua quietude atual, era apenas uma expressão do passado. Um “berço intacto dos nossos primeiros dias”, representando “uma relíquia fiel do Brasil primitivo”. Pouco conhecida, Bertioga na década de 1930 era “motivo emocional e suave para os curiosos, um recanto divino e humilde para recreio e descanso”. Em “sua obscuridade, seu abandono, seu silêncio, o desvão praiano ‘cantava’ aos olhos e a alma um hino doce e glorioso de paz e brasilidade”.
Ainda segundo a Revista Carioca, Bertioga, como as cidades do litoral paulista, nesta época só tinham, a “par de sua poesia natural, perfume e vestígios de um passado venerando”. Do seu esplendor guerreiro de antanho, entretanto, havia ainda ali “reminiscências sagradas e formosas”. Bertioga, em “seu abandono glorioso, parece sonhar, em silêncio, ante a imensidão do Atlântico”. A população era pequena, talvez com 800 habitantes. Retalhado em fazendolas e pequenos sítios, seu solo produzia quase que, exclusivamente, bananas. A pesca constituía mais motivo de alimentação do que comércio. A fauna marinha era opulenta. A beleza de suas visões e paisagens empolgava os olhos e o espírito. As figueiras-bravas davam ali uma nota original, em sua abundância pelo terreno arenoso e claro.

Capa da Revista Carioca nº 56, que trazia nas páginas 03 e 04 uma matéria especial sobre Bertioga, ilustrada com fotos do Dr. Ricardo Daunt.
Em 1937, o jornalista Joel de Aquino, para a Revista da Semana, do Rio de Janeiro, visitou Bertioga e escreveu um artigo relatando alguns aspectos da Vila. Para Joel de Aquino, na história da Capitania de São Vicente, Bertioga deve ser lembrada como um dos cenários da luta entre o nativo e o conquistador. Esquecida e abandonada desde séculos, estava reduzida na década de 1930 a uma pequena localidade onde minguam os recursos.
Pouquíssimas vivendas de certo conforto salpicadas na beira da praia, alguns casinholos de taboa e zinco, e muitas palhoças escondidas pelo mato é o que ali se vê hoje.
Joel de Aquino visitou o Forte São João, e lá se deparou com as ruínas do prédio histórico. De Bertioga de outros tempos, os vestígios são os alicerces do Forte São João, tomados pelo matagal, e as paredes de pedra “esverdinhadas de limo”, além de paredes de pau-a-pique largadas aos pedaços. Telhados que parecem canteiros de gramíneas e musgos amparam ruinosas construções de portas e janelas em arco. Mangueiras que não dão mais frutos e troncos que sustentam parasitas e ostentam penduricalhos de “barba de velho” são os restos dos quintais de antigamente. Havia dois coqueiros, altíssimos e veneráveis, dando a impressão de serem marcos ali colocados pela mão dos primitivos povoadores.
Os habitantes de Bertioga são pescadores na sua maioria e vivem humildemente, heroicamente, na sua luta com o mar e com a pobreza. O amarelão assola os seus lares definhando as crianças mal alimentadas e mal-vestidas; e eles sofrem com resignação, porque os medicamentos são caros e porque o Governo não se lembrou ainda de lh’os distribuir gratuitamente por intermédio do seu serviço de Prophylaxia. O estado de penúria daqueles homens não é devido a sua indolência. Não; eles trabalham e fazem esforços para ganhar a vida. Quem viaja pelo canal encontra comumente pequenas embarcações vindas dali em longo e fatigante percurso, para deixar no Mercado de Santos as bananas, palmitos, peixes e até lenha a troco de magros mil réis. O que vemos naquele lugar é um punhado desses brasileiros de existência obscura e sofredora que vivem pelo litoral desprotegido.
Na sua visita à Bertioga, Joel de Aquino descreve que nos meses de junho e julho, muitos fogem para Bertioga, superlotando as duas pensões que lá ainda existem graças a tenacidade de um sírio (possivelmente se referindo a Elias Nehme, que era libanês) e um alemão (também possivelmente se referindo ao casal Bertha e Germano Besser).
Ali, em contato com aqueles praianos de costumes singelos, leais e acolhedores; com aqueles caboclos destemerosos e bons, é que a gente se refaz da vida agitada dos grandes centros e esquece um pouco desse artificialismo requintado dos agrupamentos civilizados.

A orla do Canal de Bertioga no final da década de 1930. Foto da Coleção de Luiz Gonzaga de Azevedo, adquirida pela Fundação Roberto Marinho e doada ao Museu Paulista, da USP. Colorizada por História de Bertioga.

Capa da Revista da Semana, publicada no dia 13 de novembro de 1937, trazendo dentre suas matérias, a visita do jornalista Joel de Aquino em Bertioga.

Rancho de pesca, em 1937, no local onde hoje ficam os jardins da Avenida Vicente de Carvalho. Foto de Joel de Aquino para a Revista da Semana.

Canal de Bertioga com a ponte de atracação ao fundo, em 1937. Foto de Joel de Aquino para a Revista da Semana.

Canoa no Canal de Bertioga, amarrada com cordas na ponte de atracação, em 1937. Foto de Joel de Aquino para a Revista da Semana.

Bertioga era dominada pela vegetação. Não existiam ruas. As casas ficavam no meio do mato, acessíveis apenas através de caminhos de areia e estreitos no meio da mata. A praia era o principal acesso aos sítios mais distantes. Foto de 1937, de Joel de Aquino para a Revista da Semana.
Em 1937, Mário de Andrade esteve em Bertioga vistoriando as ruínas do Forte São João, Forte São Luís e Ermida de Santo Antônio do Guaíbe. Mário de Andrade é um dos mais respeitados autores da literatura brasileira. É ele o autor de “Macunaíma” e “Paulicéia Desvairada”.
Como assistente técnico do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, Mário elaborou em 1937, com a colaboração de Luiz Saia, Nuto Sant’Ana e do fotógrafo Germano Graeser, um relatório sobre “monumentos arquitetônicos de valor histórico ou artístico” no Estado de São Paulo. Nele, foram listados edifícios considerados dignos de tombamento pelo órgão federal.
Era novembro de 1937 quando desembarcou de uma das lanchas da “Santense”. Ficou três dias em Bertioga. Foram dias de muita chuva. Ao chegar, não encontrou mais quartos nos locais de hospedagem, pois a “Pensão Bertioga” (do casal Besser) e a “Pensão Paulista” (de Elias Nehme) estavam lotadas de “veranistas” como expressou Mário de Andrade.
Segundo ele, a Vila de Bertioga contava com dois veículos automotores. Eram dois caminhões. Um estava a serviço no Indaiá, no transporte de tainhas, era o Chevrolet 1929 de João Sabino Abdalla. O outro era o caminhão de Elias Nehme, que estava com problemas mecânicos.
Não teve jeito, teve que passar a primeira noite em uma casa simples na Vila, sem água, sem energia e sem comida. No dia seguinte o caminhão estava disponível para ele e pode viajar em direção ao Indaiá, onde ficaram hospedados na casa que foi de Vicente de Carvalho, e que na época pertencia a José Ermírio de Moraes. Havia um motivo para isso. O empresário José Ermírio de Moraes era um dos diretores da “Sociedade Amigos de Bertioga” que pleiteava a restauração e preservação do patrimônio histórico local.
Por causa do mal tempo, somente no terceiro dia Mário de Andrade conseguiu fazer a vistoria nas ruínas das fortificações e na capela.

Mário de Andrade. O autor de um dos maiores clássicos da literatura brasileira: “Macunaíma”.
Em 1938, Aristeu Tavares, um dos fundadores do “Bertioga Futebol Clube” e filho único de Joaquim Tavares (falecido em 1929), apresenta a planta oficial do que seria o primeiro projeto de loteamento de Bertioga. Era a Villa Carmen. O nome foi escolhido porque a propriedade foi adquirida em 1918 por Joaquim Tavares da “Irmandade dos Carmelitas Fluminense”. É daí que vem “Carmen”. Aristeu Tavares faleceu em 1939, um ano depois da elaboração do projeto de loteamento, o que resultou em diversas ocupações clandestinas. Por outro lado, quando Joaquim Tavares comprou a propriedade já existiam moradores em suas posses legítimas: Nestor Pinto Florêncio de Campos, João Sabino Abdalla, Elias Nehme, Miguel Bichir, Nestor Pinto Florêncio de Campos e Epiphânio Batista (Faninho).
A existência de um projeto de loteamento era uma novidade na época. A primeira legislação brasileira sobre loteamentos urbanos e rurais foi o Decreto-lei nº 58, de 1937 e um ano depois Aristeu Tavares já apresentava um projeto oficial. A legislação da época não exigia espaços livres ou terrenos destinados a equipamentos públicos comunitários de educação, saúde, lazer e similares, razão pela qual não existem espaços destinados aos serviços públicos, além do que, as ruas, calçadas e lotes foram concebidos demasiadamente pequenos ou estreitos. De qualquer forma, a demarcação de lotes e do sistema viário permitiu um importante planejamento, organização e recomposição urbana da comunidade instalada na Vila de Bertioga. É certo que a Vila Carmen não é a Vila de Bertioga, pois ocupava um espaço menor, mas todos os comerciantes estavam localizados neste trecho e a maioria dos moradores também. Além dali, permaneciam algumas ocupações no entorno do Forte São João.
Foi neste projeto de loteamento que foi atribuída à orla do Canal de Bertioga o nome de “Avenida ‘de’ Vicente de Carvalho”. Pessoalmente, manuseando os arquivos históricos, em processo judicial do qual pedimos o desarquivamento, tivemos acesso a planta original. É a Vila Carmen o primeiro loteamento de Bertioga. Nem tudo previsto na planta foi executado ou demarcado. Mas é possível identificar o nome da Avenida de Vicente de Carvalho, com destaque para o termo “Avenida de Vicente de Carvalho” e não “Avenida Vicente de Carvalho”. Era uma homenagem de Aristeu, a final de contas, o poeta Vicente de Carvalho frequentava o armazém do Joaquim Tavares. Não é só. A Rua Presidente Júlio Prestes, em frente a ponte de atracação, também é mencionada. É possível identificar a Rua João Carvalhal Filho (Presidente da Câmara de Santos e importante personalidade política na década de 1920), que não teve seu nome oficializado. Outros nomes estão inelegíveis. É possível identificar na planta o esboço tracejado da futura Rua Domingos Pires.
Mais tarde, na década de 1940, parte da Vila Carmen é vendida para Cristovam Ferreira de Sá.

A planta da Vila Carmen, elaborada em 1938. No desenho, é possível identificar a ponte de atracação, a Avenida “de” Vicente de Carvalho e a Rua Presidente Júlio Prestes. O primeiro projeto de loteamento de Bertioga. Planta original, oficial e de valor histórico admirável.
Porém, foi somente em 1953 que a Câmara Municipal de Santos, por lei municipal, tornou oficial os nomes “Avenida Vicente de Carvalho” e “Rua Júlio Prestes”.

Próximo a ponte de atracação das lanchas da Santense, naquela que viria a ser a futura Avenida Vicente de Carvalho. Uma imagem rara da Vila de Bertioga em 1935. Foto extraída de Poliantéia de Bertioga, de Fernando Martins Lichti. Foto recuperada pelo site História de Bertioga.

Terras de Gabriel Fernandes Garcez e Miguel Bichir, em frente o Canal de Bertioga. No fundo, é possível ver o Forte São João. Foto de 1935. Poliantéia de Bertioga, Fernando Martins Lichti.

Vista para a praia a partir da Pensão Bertioga, localizada ao lado do Forte São João. Foto da década de 1930. Poliantéia de Bertioga, Fernando Martins Lichti.

Casa de pau-a-pique na Vila de Bertioga, em 1936. Foto do Dr. Ricardo Daut, Diretor do Instituto de Identificação Criminal de São Paulo, publicadas na Revista Carioca nº 56 e recuperadas por “História de Bertioga”, de Jamilson Lisboa Sabino.

Forte São João, em 1936. Foto do Dr. Ricardo Daut, Diretor do Instituto de Identificação Criminal de São Paulo, publicadas na Revista Carioca nº 56 e recuperadas por “História de Bertioga”, de Jamilson Lisboa Sabino.

Forte São João, na década de 1930. Foto arquivada no Museu Paulista (Universidade de São Paulo), que detém seus direitos autorais. Foi cedida oficialmente e autorizada sua reprodução exclusiva para “História de Bertioga”, de Jamilson Lisboa Sabino.

Forte São João, na década de 1930. Foto arquivada no Museu Paulista (Universidade de São Paulo), que detém seus direitos autorais. Foi cedida oficialmente e autorizada sua reprodução exclusiva para “História de Bertioga”, de Jamilson Lisboa Sabino.
Em 1939 Bertioga recebe a visita de um dos intelectuais mais notáveis do Brasil na época: José Carlos de Macedo Soares. Ele nasceu no dia 6 de outubro de 1883 em São Paulo/SP e faleceu no dia 29 de janeiro de 1968 em São Paulo. Era formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Ocupou a presidência do Centro Acadêmico. Participou do comitê organizador da Semana de Arte Moderna de 1922. Foi jurista, historiador, interventor federal do Estado de São Paulo e ocupou diversos cargos públicos. Foi ministro da Justiça e de Negócios Interiores de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (interino), e ministro das Relações Exteriores de Nereu Ramos. Foi Presidente do IBGE. Foi membro e Presidente da Academia Brasileira de Letras e da Academia Paulista de Letras. Participou da fundação do Rotary Club de São Paulo.

José Carlos de Macedo Soares está no centro da imagem, segurando o chapéu em frente o Forte São João em 1939, quando era Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

José Carlos de Macedo Soares