A “Colônia de Pescadores” - 1921

A “Colônia de Pescadores” de Bertioga está localizada na Avenida Vicente de Carvalho, nº 26, em frente ao Canal de Bertioga.

A “Colônia de Pescadores” é uma associação civil, constituída dos profissionais que atuam com a comercialização de pescados. É uma entidade sindical, que representa os interesses dessa categoria de trabalhadores.

Segundo Luzimar Soares Bernardo, em sua dissertação para a PUC/SP, no período compreendido entre 1919 e 1923, a Marinha do Brasil instituiu mais de 800 colônias de pescadores por todo o litoral brasileiro. De acordo com o divulgado na época por quem comandou a missão de criar essas colônias, Almirante Frederico Villar, o governo preocupava-se com esses trabalhadores que eram, na sua grande maioria, viviam em condições de muita precariedade. Com um plano de normatizar e, também, de nacionalizar a pesca, as colônias foram instituídas. Aqueles que não aceitaram se nacionalizar foram proibidos de exercer, legalmente, a pesca. Aos que se enquadraram no novo modelo de trabalho, foi prometido, dentre outras coisas, escola para os trabalhadores e suas famílias, assistências médicas e odontológicas, além de melhoria das condições de trabalho e doação de insumos pesqueiros para melhorarem suas condições de vida.

Frederico Villar

Dois fatores contribuíram para essa investida do Estado: primeiro, o país começou o século XX importando peixes, apesar de possuir um vasto litoral e uma diversidade de águas interiores; segundo, após a primeira guerra mundial, aumentou o interesse do Estado em defender a costa brasileira.

A “Colônia de Pescadores de Bertioga” fazia parte dessa “missão” de Frederico Villar. O seu nome original é agora resgatado: “Colônia de Pescadores Z-7 Vicente de Carvalho”. Anos depois a Colônia de Pescadores alterou sua denominação para Colônia de Pescadores Z-23. Na região, na década de 1920, foram instaladas várias colônias: Z-1, em Santos, Z-2, na Ilha Barnabé, Z-3, na Bocaina (Vicente de Carvalho), Z-4, em São Vicente, Z-5, em Itanhaém, entre outras.

A história antiga da Colônia de Pescadores Z-7 de Bertioga pode ser dividida em três momentos: a) instituição e inauguração, em 1921; b) doação do terreno para a construção da sede e lançamento da pedra fundamental, em 1923; c) conclusão das obras e cessão para a Escola Municipal, em 1924.

Foi inaugurada no dia 8 de agosto de 1921, em uma casa improvisada, pois somente em 1924 é que teve uma sede própria.

O Almirante Frederico Villar esteve presente na cerimônia de inauguração. Ele, juntamente com familiares e amigos, partiu às oito da manhã do cais da Alfândega em direção à Bertioga, no rebocador “Santos”, gentilmente cedido pela Companhia Docas. Vieram acompanhados da Banda do Corpo Municipal de Bombeiros, que executou várias músicas de seu repertório, durante a linda viagem pelo Canal de Bertioga, tendo como cenário a paisagem primitiva dos manguezais. Ao chegarem na ponte de atracação, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelos escolares.

Vicente de Carvalho estava presente na cerimônia. Foi o Almirante Frederico Villar quem propôs a homenagem a Vicente de Carvalho, dando nome a Colônia de Pescadores de Bertioga.

Coube ao próprio homenageado, o ilustre poeta Vicente de Carvalho, proferir o discurso de inauguração da sede da Colônia de Pescadores. O seu discurso levou pronto, por escrito, e apenas leu no dia, o que tornou possível que ficasse guardado para a história, documento do qual tivemos acesso junto a biblioteca da Universidade de São Paulo – USP. Assim discursou Vicente de Carvalho:

Começarei dizendo-vos que agradeço, comovido, a honra aqui prestada ao meu nome. E passo adeante, porque o meu nome é bem pouca cousa, e outro, o do benemérito iniciador do acontecimento que festejamos, deve ser, neste momento, o único de que nos lembremos.

A Colônia de pescadores que hoje se inaugura é mais uma afirmação, modesta mas firme, do sentimento nacionalista em acção; sentimento que, ás vésperas do centenário da nossa Independência, parece empenhado na faina de fazer um Brazil afinal brazileiro, bem brazileiro, apaixonadamente brazileiro.

A nacionalisação da pesca impunha-se, antes de tudo, como necessidade, hoje reconhecida e adoptada pela Lei, da nossa defeza militar. O pescador, que em geral só vemos na humildade do seu officio, tem, e precisa ter, em paiz como o nosso, uma alta funcção. E’ elle como um paciente anatomista que, dia por dia, estuda e sonda, na sua estructura e nas suas freqüentes mudanças, o fundo do mar; e assim conhece, e só ele pôde conhecer, nos pormenores dos seus canaes, das suas enseadas, das suas barras, no perigo oculto dos seus baixíos e na trahição dos seus parceis, a costa, essa costa de centenas de léguas pela qual a nossa terra se abre para o oceano, quer dizer, se expõe ao mundo.

Em caso de guerra, a classe dos pescadores não será apenas um viveiro precioso de bons marinheiros; e sim, com o concurso dos seus barcos, com o seu conhecimento pessoal das intimidades da costa, com a sua bravura tranquilla de homens afeitos á lucta diária com o mar, um guia indispensável e um auxiliar poderoso.

Mas nem só por esse interesse technico se impunha a organisação da pesca. Perdiam-se, dispersos pelas nossas praias, meio milhão de brazileiros, de genuínos brazileiros, até agora abandonados e como esquecidos da protecção que o Estado deve a todos os cidadãos, do amparo que a Pátria deve a todos os seus filhos, curando-lhes da saúde, dando-lhes escolas, congregando-os em cooperativas, regulando o exercício da sua profissão, tirando-os assim da miséria econômica, da miséria física, da miséria intelectual, em que ingrata e ininteligentemente os deixava vegetar.

Tanto se cuida hoje, e com razão, de regular, em beneficio dos trabalhadores da terra, o trabalho. E que outro mais digno desse cuidado, que o dos trabalhadores do mar?

A terra, como um seio de mãe, acolhe o homem; o mar, como um inimigo, resiste-lhe. Aos que lhe dirigem essa prece, que é o trabalho, a terra corresponde com o sorriso das suas flores e o tesouro das suas searas. Aos que o afrontam para sulcar-lhe o dorso instável, para devassar o mysterio dos seus abysmos, para arrancar-lhe as riquezas vivas que cria e esconde, o már, monstro cioso, opõe a fúria desgrenhada das suas ondas, a cegueira das suas cerrações, a força das suas correntezas inconstantes, c- capricho dos ventos que o varrem e como o endoudecem, e, mais do que tudo, o infinito das suas solídões, feitas de ameaças de morte, e onde quem nellas se perde sabe que morrerá sem remédio, mas nem pode prever si, dentre as trez terríveis agonias que o disputam, o tragará a do naufrágio, o devorará a da sede, ou o inanirá a da fome.

A nossa civilisação que, com olhares cada vez mais compassivos, olha para os trabalhadores da terra, e procura melhorar-lhes as condições de vida, e tornal-os mais felizes, deve, com redobrado carinho, volver também os olhos para os humildes trabalhadores do mar, e, cuidando da sorte delles, feita de esforço, de heroísmo e de miséria, procurar tornal-os menos infelizes. Proteger esses filhos desherdados, e sempre promptos a pagar-lhe pontualmente o tributo de seu sangue, é um dever elementar que a nossa terra só agora começa a cumprir.

Mas a organisação da pesca, como está em boa hora sendo executada, é, por outro aspecto ainda, crédora da nossa simpatia e do nosso applauso. Contra disposições de leis desrespeitadas sem repressão, a riqueza dos nossos mares estava sendo destruída, canaes e gamboas das nossas costas estavam sendo damnificados. A regulamentação effectiva da pesca vem salvar das mãos da ganância que pouco se lhe dava disso uma dupla riqueza que faz parte do patrimônio nacional. O nosso litoral é recortado de inúmeros canaes, e chanfrado em numerosas barras que são, ou podem ser, uns e outros, proveitosíssimos. Esses meios de communicação, presentes da natureza, estavam sendo obstruídos, atulhados, desfeitos, pela acção lenta mas incessante de curraes com que, aos milhares, se afrontava impunemente a prohibição antiga e terminante da lei.

O mar das nossas costas é, ou era e precisa tornar a ser, fértil em peixes. Essa fertilidade representa um capital imenso que as redes de malha miúda, ha longos annos prohibidas por lei e até agora empregadas sem castigo, vinham criminosamente destruindo, em proporções cada vez maiores. Todos vós sabeis que, dia e noute, em nossos mares que assim se despovoavam rapidamente, eram sacrificados, com o peixe aproveitável, milhões de outros ainda em estado de criação, e que, arrastados para as praias, alli ficavam a apodrecer e a infectalas.

Agora, tudo isso está acabando. Uma nova éra começa para a pesca no Brazil e para o pescador brazileiro. Uma passa, de destruição estúpida de riquezas, a colaboração intelligente na prosperidade econômica da nossa terra. O outro, de pária, isolado e abandonado na solidão de suas praias, humilhado e desprotegido na sua miséria, se transforma, protegido em todos os seus direitos, disposto, de coração agradecido, ao cumprimento te todos os seus deveres, em cidadão renascido de uma Pátria grande e próspera.

Na execução dessa obra complexa, benemérita e triunfante, está tendo parte pessoal de grande relevo o commandante Villar. Orgam de um Governo clarividente no cumprimento de uma lei de importância capital para a nação, vem elle pondo ao serviço da causa que, por assim dizer personalisa na sua applicação, muito mais do que a simples obediência de um marinheiro, destinado, por profissão, a servir a Pátria, vivendo para ella, ou morrendo por ella. Enfrentando todas as resistências, com um ardor apaixonado, uma dedicação absorvente de toda a sua alma, uma actividade, uma energia, uma tenacidade, uma coragem civica, que não hesito em qualificar de heróicas, está elle ganhando, para vós, pescadores brazileiros, para todos nós, brasileiros que amamos o Brazil, essa causa, já agora triunfante na convicção dos espíritos, na simpatia dos corações, na realidade dos factos.

E essa acção de um dos nossos marinheiros deve orgulhar-nos e enternecer-nos como mais uma das tradições que hão de ficar da nossa marinha de guerra, em cuja historia tantas rebrilham. Como sem querer, olhando para esse feito praticado á sombra da nossa bandeira por um marinheiro em quem tão altamente se afirmam as qualidades da nossa raça mestiça, da raça que fez o Brazil que é e está fazendo o Brazil que ha de ser, penso em Barroso atirando sobre os navios paraguayos a proa de madeira da sua corveta transformada, por um golpe de gênio e de audácia, em aríete; penso em Maurity. fazendo a sua pequena canhoneira passar, sosinha, impávida como si a guiasse um simi-deus e incólume como por milagre, através do chuveiro de balas que sobre ella concentravam os duzentos canhões de Humaytá.

A nossa terra, que tem justo orgulho de ser a de Rondon, deve orgulhar-se também de ser a de Frederico Villar. Um, soldado, absorve-se na tarefa de desbravar sertões e integrar em nossa nacionalidade os últimos rebentos do seu primitivo tronco tupy; o outro, marinheiro, dedica-se á tarefa de conquistar para o Brazil o mar das nossas costas, e integrar na prosperidade brazileira, isto é, na Pátria brazileira, meio milhão de humildes concidadãos nossos até agora abandonados e esquecidos na sua miséria.

Pescadores brazileiros, e todos nós, pescadores ou não, mas brazileiros de nascimento ou de coração, aclamemos aqui, onde ficará gravado para sempre, o nome benemérito de Frederico Villar.

Vicente de Carvalho, o poeta do mar e o cidadão da República.

Na cerimônia do dia 8 de agosto de 1921, foi convidado a discursar o Prof. Delphino Stockler de Lima, Inspetor de Ensino, a quem coube homenagear a “madrinha” da Colônia de Pescadores, Adelaide Carvalho, filha de Vicente de Carvalho.

O terreno para construção da sede da Colônia de Pescadores foi doado por Joaquim Tavares e por sua esposa Maria do Carmo Pinto de Campos Tavares, por escritura pública, em 18 de setembro de 1923. Mas a construção do prédio que abrigaria a sede da Colônia de Pescadores e a escola somente foi possível com o apoio de empresários da época.

Doação lavrada em Cartório no dia 18 de setembro de 1923 e noticiada no dia seguinte nesta publicação do Jornal A Tribuna de Santos.

Foram donatários de valores para construção da sede da Colônia de Pescadores, segundo o Jornal A Tribuna de Santos: Vicente Correa de Mello, Raphael Sampaio e C., Martins Wrigth e C Ltd, Almeida Prado e C., Empresa de Pesca Santos, Luiz Couceiro, C. Mechanica e Importadora S. Paulo, J.C. Mello e C., Bento de Carvalho e C., Silva Ferreira e C., Naumanu Cepp e C. Ltd. Cada um deles contribuiu com cinquenta mil “réis”, contabilizando quinhentos e cinquenta mil “réis”.

O Jornal A Tribuna de Santos de 24/11/1923 noticiava o lançamento da pedra fundamental, a ser realizado no dia seguinte, e os responsáveis por custear a construção do edifício.

O lançamento da “pedra fundamental” do edifício ocorreu no dia 25 de novembro de 1923, ato que aconteceu com grande solenidade, contando com a participação dos alunos orientados pela Professora Marina Leite de Moraes. As crianças cantaram o Hino Nacional e até depositaram uma “urna” (cápsula do tempo) nas fundações do futuro prédio da Colônia de Pescadores.

Em 1923 a Colônia tinha 180 pescadores e 45 armadores matriculados. Na cerimônia, dentre as autoridades presentes, estava José Inácio Hora, que nessa época era Inspetor Policial de Bertioga, tornando-se Professor no ano seguinte. O Presidente da Colônia de Pescadores de Bertioga era Gabriel Bento de Oliveira Filho, que nessa época também era Professor da Escola Municipal do Bairro da Cachoeira, onde morava, nas margens do Canal de Bertioga. O secretário era Eugenio de Araujo Cozo.

O edifício que abrigaria a Colônia de Pescadores e a escola teve suas obras concluídas em 1924.

Somente após o falecimento de Vicente de Carvalho é que a escola também passou a ser denominada de Escola Vicente de Carvalho, por indicação do Legislativo de Santos.

A Colônia de Pescadores desde sua fundação e mesmo antes do prédio ser construído, organizava anualmente a Festa de São Pedro, o santo padroeiro dos pescadores, com guloseimas, bebidas e muita diversão especialmente para a criançada. Para os adultos, tinha até um leilão de prendas.

A sede da Colônia de Pescadores Z-7 Vicente de Carvalho.

No dia 30 de junho de 1924 a Festa de São Pedro ficou por conta de Joaquim Tavares, sua esposa e o filho Aristeu Tavares. Os alunos da Escola Vicente de Carvalho participaram, acompanhados da Professora Mariana Leite de Moraes e, como de costume, cantaram o Hino Nacional. Teve sanduíche, doces e refrescos. Tudo de graça para a comunidade. E à noite, foram distribuídos fogos de artifício e “bombinhas” para a bagunça e alegria de todos.

 

Escola Isolada Vicente de Carvalho, em foto da década de 1930. No lado direito da imagem está o Professor José Inácio Hora.